segunda-feira, 4 de maio de 2015

O "amor livre" e a bicha preta

Após ler um maravilhoso texto de Gabriela Bacelar que circulou nas redes sociais chamado "A imposição do seu amor livre pra mim não é novidade" na página Blogueiras negras, tomei quase que um soco na boca do estômago, pois custei um tanto pra me perceber como um gay preto e gordo e que, portanto, esse papo de "amor livre" (propositalmente entre aspas) não tinha como me representar.

Basicamente, no texto, é defendida toda uma argumentação de como a pauta amplamente defendida na esquerda: o "amor livre" é bem seletiva no sentido racial. Enquanto as mulheres brancas tiveram sua liberdade sexual sancionada pelo perverso sistema patriarcal, as mulheres negras foram submetidas a todo tipo de abuso: moral, sexual, etc; e a imposição de um suposto "amor livre" sem a problematização de todo esse contexto histórico é, no mínimo, irresponsável. 

Primeiramente, quero deixar claro que parto e sempre partirei do pressuposto de que se não é livre, não é amor. Não discutirei, embora ache interessante, as definições e origens do amor, mas apenas o "amor livre" como um sistema alternativo e contra-hegemônico. Iniciei o texto citando a mulherada porque não tem como me olhar no espelho, reparar a cor da minha pele e não associá-la à cultura do estupro que estava presente desde a época dos senhores de engenho. Sou preto de pele mais clara e cabelo não cresco; minhas características físicas são frutos do estupro de várias mucamas, fato velado com o termo miscigenação. É dessa maneira que as mulheres negras até hoje são encaradas: como as outras, as não oficiais, "as nêga". 

Eu te desafio a me amar
Diana Blok
Na realidade das relações homoafetivas, não é de se espantar que elas tentem ao máximo se enquadrar dentro de um esquema heteronormativo, pois é essa a forma que, ainda que timidamente, goza de certa aceitação na sociedade burguesa. Nada mais natural que uma esquerda combativa propusesse a contra-hegemonia na maneira de relacionar-se. O problema é que a imposição dessas maneiras supostamente contra-hegemônicas de se amar, de se relacionar, etc, na prática acabam privilegiando a parte da sociedade que sempre foi privilegiada. 
Numa situação parecida à das mucamas, a bicha preta, sobretudo afeminada (sic.) nunca esteve no imaginário burguês como sujeito de uma relação monogâmica. Pelo contrário, a bicha preta será alvo de chacota, dentre outros fatores, pela sua "promiscuidade". O que exatamente quero dizer com isso?

A vivência de um gay branco, sobretudo masculinizado, é muito diferente da minha como negro 

Por maior que seja a onda conservadora, existe uma representatividade, insuficiente, mas bastante positiva, de casais homoafetivos  hoje em comerciais, filmes, telenovelas, etc. O grande problema está na pobreza (no sentido de pouca diversidade) dessas representações. Se os casais gays (masculinos e femininos) aparecem e, aos trancos e barrancos conseguem ser bem aceitos por pelo menos uma parte da sociedade, esses casais, na esmagadora maioria das vezes, apresentarão padrão eurocêntrico e heteronormativo, fazendo apenas um recorte gay para as famílias dos comerciais de margarina. Nada mais legítimo, então, que questionarmos esses modelos de família como únicos; eles não são, e defender a monogamia compulsória nunca será a minha pauta.

Sobre o que, exatamente, se trata esse texto então? Se os gays brancos chegaram num ponto em que podem questionar a monogamia, já que o modelo heteronormativo nas relações homoafetivas vêm ganhando aceitação, nós, negros, estamos num caminho paralelo (nunca oposto), lutando pelo direito de encarar a monogamia como uma das diversas formas possíveis de amor.

Entendendo o porquê do caminho paralelo

Nesse ponto, pedirei licença para contar um pouco da minha história. 

Minha condição de preto e gordo me conferiu a posição de preterido. Sempre! Era sempre eu que ficava sem pegar ninguém na balada porque, por uma questão de "gosto", as pessoas preferiam investir nos meus amigos brancos. E é aí onde a bicha preta é alocada: na fetichização, na hipersexualização e/ou no preterimento. Se tiver o pauzão, ela servirá como fonte descartável de prazer pro viado branco colonizador; se for afeminada, vai ser um depósito de esperma às escondidas, mas nunca a primeira opção. Voltarei a esse ponto algumas linhas abaixo.

Dadas as circunstâncias, nada mais natural, então, que eu queira reivindicar o meu lugar como protagonista nas relações que perpassam pelo meu corpo. Quero me sentir livre pra reivindicar o tipo de amor que me foi negado. O que a bicha branca de esquerda não consegue entender é que reivindicar essa forma de amor não é legitimar o mito do amor romântico. Pelo contrário, é querer estar no mesmo papel em que os brancos se encontram: capazes de problematizar sobre relações monogâmicas simétricas. Hoje entendo como liberdade conseguir superar uma opressão histórica que se deu sobre o meu corpo. Alcançá-la seria então, dentro da minha realidade, saber que meu parceiro superou essa lógica nojenta que esmaga a nossa auto-estima, que ele, dentre tantos corpos brancos e sarados, escolheu estar comigo! Aí sim, meu caro irmão da pele branca, eu diria que o amor é livre, sobretudo da subjugação às amarras estéticas e elitistas. Aí sim eu diria que o amor, na minha realidade, está isento de jogos de poderes e de assimetrias!

Se é pra debater o amor livre (sem aspas), caro irmão, façamos os recortes raciais. Já fui ingênuo de acreditar em relações abertas como modelos únicos de superação, hoje não caio mais nessa armadilha. Tenho refletido sobre as minhas experiências afetivo-sexuais com pessoas brancas e, sinceramente, a cultura da colonização perpassou todas essas relações; avalio que não teve nada (ou quase nada) de empoderador nessas experiências. Pelo contrário, elas me fizeram questionar:
Qual o meu problema?
Por que a maioria dessas experiências foram efêmeras?
Por que sou desinteressante o suficiente a ponto de não sustentar essas relações?
Reparem bem, caros leitores, que não estou falando necessariamente de namoro, mas de relações com um pouco mais de aprofundamento que (não tão) coincidentemente só aconteceram com outras pessoas não brancas. 

Eis que me surge a resposta: sou preto e gordo. No imaginário da bicha burguesa, quando se pensa em um parceiro, raramente ele carregará as minhas características físicas. No máximo eu posso despertar a curiosidade fruto de um fetiche baseado em estereótipos como: "negros têm o pau grande", "negros são mais quentes", "negros são fogosos"; ou "gordinhos são bons de cama", "gordinhos são mais carinhosos", etc.

O "amor livre" não é capaz de superar esses estigmas

Citando mais uma vez Gabriela Bacelar:

"Se a mulher negra tem ciúme é porque ela não se sente suficiente, se sente feia, se sente menos que seu próprio companheiro, e portanto são inseguras, tímidas, temerosas, e sentem-se sozinhas"

O ciúme é só vaidade?
Quer defender, caro irmão branco, a sua liberdade legítima de pegar geral? Acho ótimo (sem ironias). Só não queira chamar isso de amor livre. Querer universalizar o amor (nesses termos) é partir da premissa de que todos nós tivemos as mesmas oportunidades de vivenciá-lo. O nome disso é falsa simetria. Caso não tenha ficado claro, sou defensor do amor livre, aquele que é a base de sustentação para relações livres de poder, em que um relacionamento fechado pode muito bem se moldar, sem, de forma alguma legitimar a monogamia compulsória e o mito do amor romântico. Colocar-nos a nós, negros, em condições semelhantes às suas é desonesto, irmão. Sugiro que perceba os reflexos colonialistas de como construímos o nosso tesão, enxergue todos os privilégios que isso lhe confere e os problematize. "Amor livre" pautado e protagonizado por gente cis branca não é mera coincidência. Ai de um branco se ousar dizer que meu ciúme é sentimento de posse. Não se pode ter esse tipo de sentimento quando uma suposta forma hegemônica de amor está apenas no nosso imaginário, não no nosso cotidiano. Sua forma de pensar a liberdade não me representa!

Por fim, citarei
Diana Blok:

"Eu te desafio a me amar"

#pretoegordo

2 comentários:

palominhams disse...

Meu amigo lindo, esse texto me contemplou plenamente. Precisamos conversar sobre isso pessoalmente! Beijo, saudades!

felipe disse...

Todo o meu apoio a você Túlio.

Tenho 22 anos, sou negro e gay e durante quase toda minha vida quis negar essa disparidade, até mais ou menos uns 3 anos. Nunca quis me vez como menos favorecido, mas a realidade para aqueles que fogem ao padrão é essa mesma que você descreveu muito brevemente.
O problema é ter coragem e deixar isso bem claro, não ter medo de parecer miserabilista ao falar com os amigos (quase todos brancos).